(em construção)

20091029

robertsau

Robertsau é um pequeno bairro bucólico a nordeste de Estrasburgo, quase fora da cidade, nas margens do canal l'Ill, a meio caminho da fronteira alemã, entre o bairro diplomático do Palácio da Europa com a sua Orangerie e o magnífico parque de Pourtalés.

Naquela época, as casas de estilo típico de classe média francesa, numa mistura pouco ortodoxa com uma arquitectura renana, estavam distribuídas por pequenas ruas que serpenteavam arrumadas e limpas. Eduardo sabia que tantos anos depois tudo devia continuar a estar como era, a Robertsau era um dos bairros mais tranquilos da capital europeia, e hoje devia continuar a ser exactamente da mesma forma.

No centro do bairro havia uma pequena igreja, como nas aldeias. Era por isso que Eduardo deduzia que a Robertsau devia ter sido uma dessas aldeias que começam por nascer nos arredores das cidades, mas que se vão acercando destas, à medida que as cidades se transformam em centros urbanos cada vez maiores.

"Sabes do que gosto na Robertsau?", lançou Nick.

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20090820

Aquele dia era o qual pelo que mais havia ansiado e, no entanto, naquele preciso instante, sentia que o controlo ainda lhe escapava. Sentia-se inane, anímico, apartado de algo que não sabia bem definir, como se fosse o mero espectador do seu próprio dia.

Eduardo olhou pela vidraça a manhã lá fora, serena e quieta, luminosa. Outubro tinha começado brando, com esporádicas manhãs solares, como se quisesse prolongar Setembro. Ele queria sentir-se como a manhã, mas não conseguia apropriar-se dela. Sentia-se agitado e o vai-vem da mãe no seu quarto não ajudava a acalmar o seu estado mental.

"Onde é que queres que arrume isto?", lançou a mãe ao passar por ele como uma rajada de vento que tivesse entrado pela porta aberta, com uma caixa em cartão cheia de mercearias nos braços.

"Mãe, eu não lhe tinha dito que não era preciso trazer nada disso... há um supermercado mesmo aqui ao lado".

A frase começara com convicção mas estompara-se nas últimas sílabas. Ele sabia que não valia a pena lutar contra aquela força viva da natureza que aquela mulher sempre mostrara ser. E ainda mais desfazado se sentia por sempre ter sido uma criança calma, sem histórias, quase demasiado tranquila, quase amorfa. O "menino-bolha" pensava de si próprio, em alusão a um filme dos anos 1970 com John Travolta. Mas enquanto a deficiência da personagem interpretada por Travolta era física, a sua era interna. Como filho único, a mãe havia-o sempre protegido exageradamente. Do mundo e de todos.

Mas até naquele dia, primeiro e glorioso salto para a independência, que ele desejara ardentemente anunciador de promessas novas, a mãe insistira em acompanhá-lo até à residência universitária Robertsau, em Estrasburgo, onde passaria os próximos quatro anos.

Pelo menos, era assim que ele tinha planeado o seu calendário a médio prazo. Matriculara-se na Faculdade de História com a ambição de um dia vir a ser arqueólogo. Também gostava de Literatura, aliás tinha começado a escrever um romance no Verão, mas sempre considerou o Curso de Letras Modernas como a melhor maneira de acabar a dar aulas. E nem queria pensar nisso. Não que ensinar lhe desagradasse, mas era-lhe insuportável a ideia de ser um mau professor e de torturar gerações inteiras de jovens, como muitos docentes lhe tinham feito a si. Considerava que para exercer aquela profissão ele não reunia as três qualidades com que sempre avaliou os seus próprios professores: vocação, talento de ensinar e... paciência.

E, além disso, acreditava então, erradamente teve de admitir muitos anos mais tarde, que a literatura não se ensina. Um escritor forja-se, sempre creu, nasce com os autores que o despertam para a vida, os que ama e os que detesta, um romancista alimenta-se das suas próprias vivências e errâncias.

"Assim não precisas de comprar estas coisas e é já esse dinheiro que poupas. Sabes bem que te ajudaremos naquilo que pudermos. Se não fosse a bolsa, não tinhas podido vir estudar e nós não tinhamos as posses. Portanto, gasta bem o dinheiro da bolsa e ...", avisava a voz materna.

Eduardo já não escutava. Já conhecia a ladainha. Assim que soube que a bolsa lhe tinha sido atribuída, explicara pacientemente à mãe que a bolsa chegava para pagar o aluguer moderado do quarto universitário, as despesas correntes e, pelas suas contas e com alguma sensatez nas expensas supérfluas, ainda sobraria algum. Mas a mãe, como sempre, mostrara-se super-protectora e trouxera-lhe compras que nem caberiam numa dispensa que aquele quarto de dez metros quadrados não tinha.

20090819

"Preparas um cerco, ou quê?"

"Hã?", Eduardo não tinha bem percebido a pergunta, nem sabia a que se referia o ruivo que se dirigia a ele, encostado na ombreira da porta do quarto contíguo ao seu, com um cigarro pendurado nos dedos.

O interlocutor tinha a estatura de Eduardo, mas era muito menos corpulento. Tinha os cabelos desgrenhados, uma camisa aos quadrados vermelhos, como os lenhadores canadianos, aberta sobre uma t-shirt preta que dizia "Nevermind". As calças de ganga eram velhas e os ténis rasos estavam sujos. Mas tudo isso dava-lhe um ar cool. Eduardo sentiu vergonha da sua camisa aos floreados à Parker Lewis, do seu cabelo bem cortado e das suas botas-ténis LA Gear, cuja lingueta Eduardo gostava de deixar fora das Lewis, para "mandar estilo". Manias que trazia do liceu.

A ponta do cigarro, que o ruivo parecia ter esquecido, desfez-se e caiu no chão do corredor, sem que ele desse por isso. Ou se deu, não se importou. Mas o seu olhar tinha um brilho surpreendentemente inteligente, e a sua voz um tom amistoso. E foi isso tudo, que desde logo, agradou a Eduardo.

"Vi os teus velhos trazerem-te víveres suficientes para aguentares um inverno nuclear... pensei que tinhas medo de morrer à fome ou ias preparar-te para um estado de sítio...", gracejou o outro.

"Bem, sabes como são os velhos...", disse Eduardo, encolhendo os ombros e rindo-se.

"Ya, meu...os meus são iguais", reconheceu o outro, numa gargalhada. "Foi por isso que eu escolhi a universidade mais distante que pude lá da terrinha dos meus."

"Vens donde?", quis saber Eduardo.

O outro levou o cigarro aos lábios, puxou pela beata demoradamente e olhou Eduardo por entre os cabelos caídos na cara. "De Biarritz. E tu?"

"Do Luxemburgo?"

"Luxemburgo, hein?", admirou-se o ruivo e soltou um assobio enquanto expelia o fumo. "O país dos bancos, o paraiso fiscal, não é?"

"É um paraíso fiscal para quem não vive lá! Pelo menos é do que os meus velhos se queixam quando estão a preencher a declaração de impostos!"

"Eh, eh, pois! E tu, és... luxemburguês? Conheci uns luxemburgueses o ano passado, em Direito, e tinham uma pronúncia diferente da tua!"

"Na verdade, sou português?"

"Portuguéche?", admirou-se ainda mais o outro, forçando o som das últimas sílabas.

"Pois é! ... Ninguém é perfeito! Há os que têm sorte e nascem ...portugueses. E depois há os outros. Eh eh...", riu-se Eduardo.

"Ya...", lançou o outro numa gargalhada. "Pareces bacano, meu. Bem-vindo à Robertsau. O meu nome é Nicholas, mas todos me tratam por Nick", e estendeu-lhe a mão.

"Prazer Nick! Chamo-me Eduardo", disse este, pronunciando o seu nome à portuguesa, enquanto apertava a mão estendida.

"Edouuardôô?...Hum, posso chamar-te Ed? É mais simples para mim."

"Sim, claro."

"Ed, isto é o começo de uma bela amizade", riu-se o ruivo com a beata no canto da boca e enquanto desviava os cabelos da cara.

"Pois, pois, aposto que dizes isso a todas", ripostou Ed.

"Eh, eh...Já gosto de ti, sabes, meu. Verdade. Anda daí, ia agora ter com uns amigos e assim ficas a conhecer o pessoal."